domingo, agosto 28, 2005

Primeiro Encontro

Se não tivesse pego a mania de chamar a mulher do vizinho de querida os dois não estariam juntos até hoje. Era sem maldade. Pelo contrário, Durval dizia o “querida” até com certo respeito, justamente para evitar um possível mal entendido entre ele e o marido da dita. Entretanto, em doze anos de casamento, jamais havia chamado Noêmia, sua esposa, de querida, e mesmo as outras mulheres que atravessaram-lhe a vida, fossem namoradas, parentes ou amigas, jamais haviam recebido o tal tratamento. Exceção feita a vizinha.
O primeiro “querida” já veio no primeiro encontro. Entrava no elevador quando viu a nova moradora chegando com as malas. Mais por costume que por cavalheirismo, segurou a porta do elevador.
— Muito obrigado. - Agradeceu a vizinha, cordial.
- Por nada, querida. - Não, não foi uma cantada, muito menos uma demonstração de informalidade, pelo contrario. Durval, coincidentemente ou não, foi seco, frio e desprovido de floreios.
Desde então o tratamento se tornou praxe e, estivesse ele com a esposa ou ela com o marido, o “querida” era sempre dito no mesmo tom e ritmo, e anos mais tarde seria definido por Noêmia como “a reverência” que lhe “cortava a honra”.
-Que reverência?! - Levantou da cama assustado.
- Essa forma absurda que você trata a morena do 601.
- Morena do 601?!
- Nossa vizinha, Durval! Fala, por que você chama a ela de querida?
Durval coçou os olhos ainda dormentes, sabia que aquela pergunta, ainda sem reposta pra ele, viria um dia, como de fato veio.
- Ora, Noêmia, sei lá. Chamo de querida porque não sei o nome. - o que era verdade.
- Mentira. Você nunca chama ninguém de querida. Nem eu que sou sua mulher.
- É porque o seu nome eu sei. Você não acha que eu tenho algo com a vizinha, acha?
Noêmia sabia que não. Mas explicou que mesmo assim aquela era uma situação humilhante pra ela e lhe pediu, implorou pro Durval nunca mais chamar a vizinha de querida.
- Tá prometido, Noêmia. Amanhã mesmo eu pergunto o nome dela e acabo com a polêmica. Satisfeita?
Não foi no dia seguinte, mas uma semana depois, numa coincidência provocada, os quatro envolvidos se viram ali, juntos no mesmo elevador. Durval e Noêmia, a vizinha e o marido. Noêmia foi a primeira a falar no que a vizinha lhe respondeu de pronto:
- Bom dia. - repetindo a frase da outra sendo, no entanto, mais simpática.
Chegara a vez de Durval:
- Bom dia... - por costume ia concluir com o "querida", mas lembrou-se da promessa que até ali não vinha sendo cumprida. - Como é mesmo seu nome? - disse surpreso com o estranho nó na garganta que lhe entrecortou a fala.
- Rosane. O nome dela é Rosane. - respondeu o marido da vizinha, quase que num desabafo.
Pronto. O constrangimento estava pra sempre desfeito. E o que é melhor: pelo marido da outra que finalmente se fez presente como homem, vibrou Noêmia consigo. Com certeza ele também sentia vergonha parecida com a dela, talvez até maior, pois no caso dele se tratava de um estranho chamando a esposa de querida e os homens são mais recalcados com essas coisas, porém são mais recalcados ainda quanto ao assumirem suas fraquezas, sabia ela, e talvez por isso o marido tenha se omitido por tanto tempo. Não importava, antes tarde do que nunca o problema estava resolvido. De agora em diante os dois casais poderiam iniciar uma convivência harmoniosa de vizinhos... Entre o sexto e o sétimo andar Noêmia pensou que ela e Durval quase não tinham amigos e talvez fosse a oportunidade, agora que não existiam mais constrangimentos, de serem até, por que não, amigos.
O elevador parou. Durval e a mulher desembarcaram seguidos pela vizinha e o marido. Durval culpou a angina pelo desconforto que sentia e, com sucesso, se esforçou para parecer natural, tanto que tomou a iniciativa na hora da despedida. Primeiro o marido:
- Tchau. - depois Rosane. - Tchau, Rosane. - pronto, assunto encerrado, pensou.
Poderia ter encerrado mesmo, mas a voz baixinha, quase tímida, se fez frorte o suficiente para ser entendida determinando assim um novo começo.
- Meu nome é Rosane, mas se você quiser pode me chamar de querida.
E mesmo que ele não quisesse já não era mais possível chamá-la de outra forma.

2 comentários:

Anônimo disse...

Totalmente curta, adorei. Tenha uma ótima semana. bjs

nobody disse...

Tudo o que uma boa prosa deve ter! Fascinante a aptidão para ambas (prosa e poesia)!