quarta-feira, dezembro 14, 2005

Velhos Amigos

Há um mês atrás ele ainda conversava sozinho. Acordava e se dava bom dia, se dava boa tarde, se dava boa noite, agradecia o almoço que ele mesmo preparava e quando a casa estava desarrumada era com ele que ele ia se queixar. O habito era antigo, vinha desde a infância, e grande parte de sua formação e base foi construída pelos conselhos que ele mesmo se deu no decorrer da vida. Nunca brigava consigo. Discussões existiam, é claro. Mas eram superadas rapidamente por um sorriso diante do espelho ou mesmo pela piada antiga que sempre que ele contava, ele mesmo ria. Era seu amigo. E cultivava por si o mesmo carinho e amor que teria por um parente, caso tivesse um. Por isso achou tão estranho quando da noite para o dia deixou de falar.
Não houve briga ou qualquer outra coisa, ele simplesmente foi dormir e na manhã seguinte acordou sem se dar bom dia. No almoço também ficou em silêncio e quando voltou da rua parecia estar mais calado ainda. Desde então não se falou mais e não quis sequer se perguntar o motivo.
Por irônia ou castigo, nesse mês de silêncio o silêncio da casa acabou por atormentá-lo mais que o seu. Só então percebeu o quanto eram calados os móveis, os quadros e até as fotos, outrora tão sorridentes, agora estavam silenciosas como as estátuas e, também como as estátuas, pareciam estar sempre lhe observando. Conseqüência foi que ele também passou a observar mais as fotos e pôde perceber que na casa só haviam fotos suas, tiradas por si mesmo. Umas antigas, outras recentes, em algumas sorrindo, noutras mais sério, mas somente fotos dele, tiradas por ele, que agora olhavam pra ele e, como ele, em absoluto silêncio. Obvio que sabia sobre o próprio hábito de tirar fotos de si mesmo. No passado era capaz de passar um dia tirando as fotos, e depois passar outros tantos dias comentando consigo mesmo o resultado final. Mas agora, todas as fotos lhe pareciam tristes e melancólicas, e não representavam nada além de alguém sozinho impresso num papel.
Sentiu vergonha das fotos, e só não as escondeu para que ninguém as visse, porque um mês antes ele mesmo havia se dito que não havia ninguém além dele. Acreditava em tudo que se dizia, e por isso não levou em conta que talvez o dito fosse outra mentira que ele estivesse contando pra si e assim parou de conversar consigo, deixou de gostar das fotos e descobriu a solidão.
Melhor. Ainda que equivocado, agora estava livre pra encontrar outro amigo quer não fosse ele mesmo.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Às Moscas

Acreditava que moscas eram anjos. Não que tivesse alguma consciência disso, não tinha. Mas, ao contrário dos seus semelhantes, as moscas não lhe causavam aquele asco instintivo, mas sim um estado de contemplação e perplexidade. “Como não poderiam ser anjos?”, pensaria se fosse capaz de pensar. As asas, os olhos, tudo nas moscas lhe parecia divino. “Se não são anjos, são demonios.”, concluiria em seguida. Mas, não conhecendo nem anjos nem demonios, portanto incapaz de diferenciar um do outro, passou a infância sonhando ser mosca.
"Melhor que ser formiga, verdade seja dita". Mal iniciava a vida e já estava convicto disso. O tempo só fez por lhe deixar mais seguro de suas convicções. Fosse a inveja da suposta dinvidade das moscas, fosse a lógica irracional de que se fosse mosca seria divino, mas o fato é que algo realmente mudára seu intimo. Não era mais como os outros, não seria mais capaz de ser, talvez até por nunca ter sido, e mesmo que quisesse não poderia mais viver num formigueiro.

Partiu.
Sabia que as moscas voavam jardim adentro, muito alé das laranjeiras, onde ele, diariamente, recolhia folhas. Como não podia voar, decidiu caminhar. Se era capaz de caminhar incessantemente em prol da comunidade, por si caminharia muito mais. Sentiu que caminhando poderia chegar onde quisesse e, certamente, chegaria no lugar pra onde as moscas voam. O lugar que mesmo sem ter visto, já conhecia dos sonhos de infancia que, agora, naqueles dias e noites de andarilho, voltavam a lhe preencher o espirito.
Assim atrevessou a segunda metade da vida. Caminhando pra onde voavam as moscas e sonhando com a chegada. E se por um lado ele envelheceu a cada passo, por outro seu sonho permaneceu jovem, alimentado pelas moscas que, ao contrário dele, pareciam incassáveis... Então, velho e cansado, já não tinha forças pra carregar um sonho, mas sabia que naquele formigueiro distante, deixado pra trás, o sonho encontraria outro como ele, que num dia olhando as moscas no céu, sonharia ser moscas, e também como ele, partiria. Portanto já podia descançar em paz, pois, apesar de não realiza-lo, deixava o sonho amparado.

Fechou os olhos e só então percebeu o forte zumbido, mais forte do nunca antes tinha ouvido. “Hoje o céu está repleto de moscas.” pensou, agora que já tinha aprendido a pensar. Não estivesse de olhos fechados, veria que as moscas, dessa vez, não estavam no céu, e sim ali, sobrevoando em círculos um monte escremento num canto de jardim... "mas as moscas não passavam de um detalhe” pensou ainda, antes de morrer sorrindo.

quinta-feira, outubro 27, 2005

no inferno.

Hoje eu joguei um futuro no lixo.
Me lembrei de quando era moleque
E abri mão de tudo sem pensar... Minto.
Pensei, sim.
Pensei um sonho que não sonhava faz tempo,
E tamanha me foi a saudade dele,
Que nessa noite sem sono
Fiz de um pesadelo aquele sonho distante.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Álbum ou Sombras.

Sentada na rua, só queria ouvir o passado. Era uma pena não ter gravado aquele tempo ido, era uma pena não ter outro registro que não aquelas fotos. Tivesse um som de lembrança, um movimento, talvez, poderia se desprender das fotos e, assim, deixar de procurá-las no chão.

segunda-feira, agosto 29, 2005

Até Amanhã

Não era, mas parecia um adolescente enciumado:
- Promete que não vai esquecer de mim?
Ela prometeu sem entender o porque da pergunta.
- E promete que vai me deixar fazer parte da sua vida? Sempre!
Não tinha como ser diferente!
- Não esquece que eu te amo.
E como ela poderia esquecer?
- Te amo muito, muito! - disse sorrindo pra ver se enganava choro.
Ela pensando que era assim que as pessoas fortes faziam quando estavam tristes, também sorriu:
- Você se separou da mamãe, mas eu continuo sendo sua filha, pai. - disse com a sua voz de menina, enquanto descia do carro. - Isso não muda.
E se despediram com a certeza de estarem juntos.

domingo, agosto 28, 2005

Primeiro Encontro

Se não tivesse pego a mania de chamar a mulher do vizinho de querida os dois não estariam juntos até hoje. Era sem maldade. Pelo contrário, Durval dizia o “querida” até com certo respeito, justamente para evitar um possível mal entendido entre ele e o marido da dita. Entretanto, em doze anos de casamento, jamais havia chamado Noêmia, sua esposa, de querida, e mesmo as outras mulheres que atravessaram-lhe a vida, fossem namoradas, parentes ou amigas, jamais haviam recebido o tal tratamento. Exceção feita a vizinha.
O primeiro “querida” já veio no primeiro encontro. Entrava no elevador quando viu a nova moradora chegando com as malas. Mais por costume que por cavalheirismo, segurou a porta do elevador.
— Muito obrigado. - Agradeceu a vizinha, cordial.
- Por nada, querida. - Não, não foi uma cantada, muito menos uma demonstração de informalidade, pelo contrario. Durval, coincidentemente ou não, foi seco, frio e desprovido de floreios.
Desde então o tratamento se tornou praxe e, estivesse ele com a esposa ou ela com o marido, o “querida” era sempre dito no mesmo tom e ritmo, e anos mais tarde seria definido por Noêmia como “a reverência” que lhe “cortava a honra”.
-Que reverência?! - Levantou da cama assustado.
- Essa forma absurda que você trata a morena do 601.
- Morena do 601?!
- Nossa vizinha, Durval! Fala, por que você chama a ela de querida?
Durval coçou os olhos ainda dormentes, sabia que aquela pergunta, ainda sem reposta pra ele, viria um dia, como de fato veio.
- Ora, Noêmia, sei lá. Chamo de querida porque não sei o nome. - o que era verdade.
- Mentira. Você nunca chama ninguém de querida. Nem eu que sou sua mulher.
- É porque o seu nome eu sei. Você não acha que eu tenho algo com a vizinha, acha?
Noêmia sabia que não. Mas explicou que mesmo assim aquela era uma situação humilhante pra ela e lhe pediu, implorou pro Durval nunca mais chamar a vizinha de querida.
- Tá prometido, Noêmia. Amanhã mesmo eu pergunto o nome dela e acabo com a polêmica. Satisfeita?
Não foi no dia seguinte, mas uma semana depois, numa coincidência provocada, os quatro envolvidos se viram ali, juntos no mesmo elevador. Durval e Noêmia, a vizinha e o marido. Noêmia foi a primeira a falar no que a vizinha lhe respondeu de pronto:
- Bom dia. - repetindo a frase da outra sendo, no entanto, mais simpática.
Chegara a vez de Durval:
- Bom dia... - por costume ia concluir com o "querida", mas lembrou-se da promessa que até ali não vinha sendo cumprida. - Como é mesmo seu nome? - disse surpreso com o estranho nó na garganta que lhe entrecortou a fala.
- Rosane. O nome dela é Rosane. - respondeu o marido da vizinha, quase que num desabafo.
Pronto. O constrangimento estava pra sempre desfeito. E o que é melhor: pelo marido da outra que finalmente se fez presente como homem, vibrou Noêmia consigo. Com certeza ele também sentia vergonha parecida com a dela, talvez até maior, pois no caso dele se tratava de um estranho chamando a esposa de querida e os homens são mais recalcados com essas coisas, porém são mais recalcados ainda quanto ao assumirem suas fraquezas, sabia ela, e talvez por isso o marido tenha se omitido por tanto tempo. Não importava, antes tarde do que nunca o problema estava resolvido. De agora em diante os dois casais poderiam iniciar uma convivência harmoniosa de vizinhos... Entre o sexto e o sétimo andar Noêmia pensou que ela e Durval quase não tinham amigos e talvez fosse a oportunidade, agora que não existiam mais constrangimentos, de serem até, por que não, amigos.
O elevador parou. Durval e a mulher desembarcaram seguidos pela vizinha e o marido. Durval culpou a angina pelo desconforto que sentia e, com sucesso, se esforçou para parecer natural, tanto que tomou a iniciativa na hora da despedida. Primeiro o marido:
- Tchau. - depois Rosane. - Tchau, Rosane. - pronto, assunto encerrado, pensou.
Poderia ter encerrado mesmo, mas a voz baixinha, quase tímida, se fez frorte o suficiente para ser entendida determinando assim um novo começo.
- Meu nome é Rosane, mas se você quiser pode me chamar de querida.
E mesmo que ele não quisesse já não era mais possível chamá-la de outra forma.

domingo, agosto 21, 2005

...saudade...

Foi se, então sem ter pra onde ir,
Por sentir que estaria bem onde estivesse
Contanto que não fosse ali,
Onde as rosas já não mais florescem
E sem flores, sem espinhos
Viveria sem galhos, sem raiz.

Foi brotar noutro jardim,
Mas sofreu ao perceber
Que em todos seria assim,
Pois a roseira que se orgulhava em ser
Não passava de um arbusto
Preso a um vaso de xaxim.

sábado, agosto 13, 2005

SE PUDER...

Puxa-me dos dedos algo que eu tenha a dizer,
Reflita-me nos olhos a imagem perdida
No intervalo da piscada
Onde olhava-me no espelho
Dessa alma imaginaria
Incomodada com o peso
De um corpo limitado.

Controla-me os movimentos e sentidos
E deixa que os sentimentos
Sejam apenas fluidos
E não escaras doloras
Perfurando minha carne.

Mantenha-me o pescoço erguido
Quando minhas verdades se afogarem em mentiras
E na hora de assinar minha penitência,
Não peço que trate minha alma com clemência,
Mas sim que me perdoe o corpo
Me mantendo o brio nos olhos,
Pois sabes na tua sabedoria divina,
Que é difícil ser humano,
Manter-se humano, morrer humano,
Sem cair no engano de ter sido torpe.

Testa-me o espirito em matéria,
Também quero eu saber o quanto ele se sublima
Diante das imposições da carne...
E se eu viver,
Um dia, ainda em vida,
Deixa-me compreender o significado dessa sensação ambigua
De ser alma sublime e ao mesmo tempo, nesse meio tempo,
Ter fim.

segunda-feira, maio 23, 2005

EPITÁFIO

De repente me veio a certeza de que morrerei esquecido.
Fui traído pela aquela esperança adolescente
De que o futuro são realizações dos sonhos
Idealizados no passado
Pra nunca se tornarem presente.

Envolto em terra, cercado de vermes por todos os lados,
Abandonarei qualquer pensamento
Sem esperar que alguém dê ouvido
Pras coisas que um dia eu quis ter contado,
Pois se assim eu também tivesse agido,
Certamente já teria morrido
... Esquecido...
Mas menos angustiado

sábado, abril 30, 2005

LAÇOS FEMININOS

No meio do parto,
A parteira puxou a criança,
Perguntou pra mãe se ela a queria,
E a mulher não sentiu nada,
Que não um latente desejo de recusar a cria.

O fez. Como, eu não sei.

Mas sei que a menina se fez,
E desafiando sua sina,
O abandono numa esquina qualquer,
Encontrou uma mãe que a queria
- E, mesmo sendo mãe postiça,
Valia por duas de sangue. -
E a criança, não conhecendo tais laços,
Se deixou envolver pelos braços da mulher
Que pra sempre a chamaria de filha.

Assim começou sua família.

Vieram irmãos, pais, depois padrastos,
E na rotina do dia a dia
Foi crescendo a menina,
Que, sem perceber, num golpe de vista,
Se deitava na sala do parto.
Agora num hospital,
Mas que lembrava-lhe aquele velho quarto,
De um passado invertido,
Visto na saída de um ventre
Nem um pouco maternal.

Uma nova criança nascia.

E entrelaçadas pela corrente sangüínea,
As duas corrigiram aquele esquecido momento triste,
Pois essa outra filha que vinha,
Vinha certa de estar sendo bem vinda.

sábado, abril 23, 2005

FOLHETIM

Não preciso de você agora,
Mas acontece que naquele minuto sem hora,
Em que você me ligou,
O filme da vida rodou
Na cinemateca do meu passado não revelado.

Nessa reprise o mocinho não busca mais uma velha parceira
Que lhe pari-ou-parta um filho numa bebedeira,
E lhe diga depois que tudo que disse antes
Foram verdades erradas, sub influciadas,
Por um montão de besteiras.

Não me importa mais esse roteiro escrito ao acaso,
Onde não existe final feliz,
A não ser os gritos, os tapas e os filhos,
Que, por sorte, ecoam agora,
Como se fossem clichês premeditados
Entrelaçando a trama de uma falsa estória,
Escrita num romance folhetinesco,
Incendiado por um amor farsesco,
Que se desgasta em meia hora.

quinta-feira, abril 07, 2005

OBVIAMENTE QUE É!

Disseram, a mim, outro dia,
que a vida não é colorida.
O dito não passa de um verdadeiro absurdo,
Pois todos sabemos que o homem
Nasce vermelho, casa de branco e morre de luto.

Meu Camarada.

Eu tenho um velho camarada,
Que nunca deixou de apertar minha mão,
Nem naqueles tempos de que nada lembro,
Nem nos dias maçantes da juventude,
E ainda agora
Sinto a mão deste meu querido amigo
A me bater na cabeça
Me chamar de menino
Me explicar as coisas que não entendia,
Mas que hoje enfrento sem medo
Por que esse velho me disse como o fazer.

Todas as manhãs me ligava,
Me buscava pra não me ver só,
Fazia das minhas cada dor sua,
E mesmo quando eram dores fúteis,
Era ele quem me ensinava a cura.

Nunca chorou. Sorriu bastante.
E quando eu me lamentava,
Este meu velho camarada
Firmava o azul dos olhos nesses meus castanhos,
E me olhando como quem olha um estranho,
Dizia que aquelas eram lágrimas úteis,
Pois, não só amoleciam a dureza da alma ali castigada,
Mas como também continham toda a beleza
Que só existe nas lágrimas bem choradas.

Depois me enxugava o rosto
E apertava minha mão
Como quem segura um filho que cai,
E, eu, por ser um filho de algum do seus filhos,
O sentia maior que meu pai.

Assim seguiram as horas daqueles dias seguros,
E agora, aqui, mesmo que distante,
Longe desse meu camarada brilhante,
Sinto sua presença a cada instante,
Pois foi ele um dia quem me disse
Que, enquanto ele caminhava pro seu destino,
Eu apenas começava o meu caminho,
E que o amigo do peito está no peito,
Nem sempre ao alcance da mão.

Então, vou seguindo nessa noite intranqüila,
Escutando sua voz
Como se fosse um sussurro me guiando no escuro,
Dizendo que não é só a morte que leva os homens,
Mas vida também nos leva
E é por ela que devemos nos deixar carregar,

Eu deixo.
Mas não me esqueço de também carregar
Esse meu camarada comigo.

domingo, março 27, 2005

MÚSICA

Ouve o barulho que vem da janela,
Escuta cada grito, cada ruído, gemido,
Percebe o som do vento tranqüilo
E deixa ele varrer o estrondoso silêncio da solidão.

Abre os ouvidos pr’esse mundo desconhecido,
Que os olhos não vão tocar,
Mas os tímpanos gravarão em cada detalhe,
Sabendo ser cada um deles uma nota da melodia,
composta por sons de vidas
Trazidos no vento.

Então,
Seja na forma de tempestade ou de brisa,
Respira esse ar vívido
Deixa que te circule nas entranhas,
E quando jogar pra fora, respira alto.
Assim, junto da tua porção de gás carbônico,
Vai vir também um suspiro sinfônico
Que diluído num acorde harmônico,
Se perderá em algum compasso,
Eternamente tocado,
Pela silenciosa orquestra universal.

sábado, março 12, 2005

FERVURA


Mesmo me queimando nas tuas borbulhas,
Continuo a beber cada gota dessa água fervente,
Fervida no fogo alto, alimentado por tua amargura,
Que, embora não tenha matado, me deixou bastante doente.

Dessa boca que beijei outrora, carrego apenas bolhas ardentes
Que só fizeram foi massacrar minha língua.
Que hoje já nem mais grita e nem xinga
Só lambe os restos daquele amor decadente.

Mas se o ardor da queimadura ainda massacra,
Por outro lado já me adaptei a fervura,
E, não sabendo a cura, convivo com essa ressaca.

Digo até que esse passado meu deu bom presente,
Pois agora, lambendo um'outra língua recente,
Vejo que tua tortura só deixou minha boca mais quente.

domingo, março 06, 2005

Diálogo Idiota

- Há quantos anos estamos aqui
Nesse mesmo quarto, nessa mesma vida
Vazia, quando o que na verdade o que eu mais queria
Era ter de volta aquela tua juventude perdida?

- Então porque ainda não foi? Porque ainda não se libertou de mim e seguiu pra onde bem quis?

- E queria que eu foste pra onde preso a você
Como quem se prende numa cela com grades redondas,
Cercadas de carne por todos os lados?

- Lamenta essa vida que seguimos juntos, não é? Mas diga?
Quem te carregou? Quem te manteve em pé para que visse
As luxurias que agora você diz não ter visto?
Quem se sacrificou por cada vontade sua?

- De que adianta. Se essa minha vontade de vida
Você ameaça com sua existência perecível.

- O que houve com a sua esperança!
Costumava se achar eterno
E agora teme se ver abandonado?
Não era eu o monte de carne,
O simples corpo que você estava apenas usando?

- E não é exatamente isso?
Um corpo finito que vai se evaporar com o tempo.

- Te evaporo junto. Não esquece que você está em mim.

- Por esse instante. Hoje estou aqui, amanhã estou ali../

- (INTERROMPE) E um dia: jaz.

- (IRÔNICA) Bobagem, acredito na vida eterna.
Já você, não pode se vangloriar do mesmo.

- (IRRITADO) Só está aqui, porque está em mim. Só é, porque eu sou. Porque penso, logo tenho de existir em pensamento.

- (RI DEBOCHADA) Pretensão de um corpo doente...

- Ingratidão de uma alma deslumbrada...


E seguiram brigando, brigando... Até que o corpo, doente e cansado, caiu desalmado. E a alma seguiu descorporada, talvez livre, mas antes olhou para trás, com uma lágrima de saudade suspensa no olhar... Estava novamente só!

domingo, fevereiro 20, 2005

Aquele Tanquinho

Antes que aquelas roupas, estiradas ao tanque, criassem fungos,
Fiz questão de lavá-las com gotas de sangue,
Para que nele minhas antigas vestes
Mergulhassem fundo, e ali ficassem de molho,
Digerindo as manchas desse meu passado sujo.

Era um tanque como este que me curvo agora:
Alvejado pela cândida esperança que sempre me descoloriu
O fundo escuro e vazio que carrego em cada olho.
Por isso que digo:
Foi num tanque que minha vida evoluiu!
E nunca me importou o fardo a ser lavado,
Pois sempre tive a certeza que, mesmo que pesado,
Haveria de ser um fardo algodoado...
E se fosse seda, linho e até fio de naylon
Também lavaria com destreza, pois,
Sendo tintureiro por natureza,
Tiraria de cada trapo a essência da beleza
Dos fios com que tinham sido costurados.

Não posso dizer que, desse tanque,
- meu velho tanque de guerra -
Tirei as roupas mais belas.
As pretas se tornaram cinzas
E assim me pareceram limpas.
Mas as brancas iam ficando amarelas
O tecido ficava mais fino... e dilacerado
Se antecipava ao seu destino:
Abrigar um velho, antes menino,
Que viveu a vida pra passá-la a limpo,
E hoje, escondido em trapos,
Perdeu o medo de morrer farrapo.

domingo, fevereiro 13, 2005

SÓ AGORA VEJO...

Já não te amava desde o primeiro encontro.
E quando nos falamos aquela primeira vez - no bar -
Eu também não te amava...
Assim como não te amei no primeiro beijo,
E também não te amei na primeira transa
Naquele primeiro dia
E no dia seguinte acordei sem te amar.
Como sempre assim o foi.

Mas também não amei seu cheiro e nem seu corpo,
Não amei suas idéias
E quando te dizia aquelas palavras belas
Elas significavam tudo,
Menos amor.
Nunca te amei.
Mas um dia te quis.

Quis por pensar que o amor nascerias,
Mas também queria por saber que, sem amor,
Nada que viesse de você me prejudicaria.
Por isso que quando me pediu pra te amar,
Não amei.
Nunca te amei.
Mas um dia, e era um dia ruim,
Além de muito distante,
Te quis.

Não sei porque, mas assim o fiz:
Casei, te acolhi, e até, por uma fração,
Pensei que te amei...
Foi quando nossa semente brotou,
Mas logo vi que era por ela meu amor,
Não por você, meu bem.
Era ela o meu porque e a razão da minha teima
Em tentar te querer,
Mesmo sabendo que nunca ia te amar.

Talvez, uma gota de ternura eu tenha cultivado por ti,
Talvez eu tenha rasgado essa pele dura que me cobre,
Só pra costurá-la com o fio de naylon cortante
Que foi a nossa relação.
Sim,
Talvez, e apenas talvez, um dia te amei.
Mas e você o que fez?

Me fez ver o porque da minha falta de amor.
Mostrando todo o seu você.
O seu você que eu nunca amei
E que, agora, não quero mais!

Obrigado por tudo.

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

PALAVRAS AO VENTO


Antes que o tom das velhas palavras retornem
Quero entornar esta gota de felicidade
E, sem me limitar a dizer a verdade,
Mentirei a mim mesmo,
Levando a alma um grito de ordem
Pra quando estiver ela quietinha,
Embriagada com minhas mentiras mesquinhas,
Eu poder furtar-lhe das dores que não são minhas
Fazendo com que nunca mais chore
Pelos que neste mundo sofrem.

Assim,
Não vou lamentar o dia decisivo,
Onde um comentário incisivo
Espantou aquele velho sorriso,
Tão presente naqueles que, em paz, agora dormem.

Antes mesmo que o verão acabe,
- talvez no fim dele eu me cale -
Espero regar as flores murchas,
Queimadas por consecutivos sois
De seguidas angustias.

E só, esquecendo este antigo lamento,
Pretendo sarar a mim e ao mundo do velho tormento,
Ser difamado por palavras tristes, perdidas ao vento,
Ao invés da biografia duma alegria fingida
Que, quem sabe um dia, poderia se fazer entre nós:
Eu e a vida.

quinta-feira, janeiro 27, 2005

METÁSTASE


A meta dissemina-se pela reta e,
Tão forte quanto o leite que sai da teta ou
A força da certeza que se prolifera nas veias,
Arrasta-lhe no sangue as células podres,
Fadadas ao esquecimento,
Filhas do antigo lamento que, agora,
Te farão descer por terra.

Arracou-lhe a raiz cravada na pele, mas,
Eis que,
A porra dela ainda anda na relva e
Contra esta sarna é nossa guerra.
Mesmo que não vencida,
Haveremos de cuspir-lhe na derrota,
E xingar-lhe antes da trégua:
“Sim, virá o fim,
Mas não virá pra mim.
Pois nesses versos me propago,
Me utilizo do tempo como régua
E é com esta que me salvo,
Da rebéldica má formação das células...”

Assim matamo-as, e, aos poucos,
Nos fazemos metástase.


* em homenagem a memória de Maurício Cunha.

sexta-feira, janeiro 21, 2005

INVERTIDO


Não. Desta vez meu poema é outro.
Não vou falar de tristeza, doença, maldade e
Nem pretendo me adentrar nas sensações do morto.

Desta vez, vou inverter meu raciocínio
Somente pra cumprir o meu desígnio:
Trazer o bem aos que se adentram no mal.

Então hei de lhe dizer, em paz e sereno,
Que dá maldade já provei o veneno
E, deitado no meu leito final, garanto:
Se pular esse caminho terá um melhor destino.

Mas não sou eu quem me perderei mais em conselhos,
Pois foram estes os meus primeiros erros:
Dizer algo que achava bom e, pro meu espanto,
Não passavam de males, lamentos e prantos.

terça-feira, janeiro 11, 2005

FRIA TEMPESTADE


Que maldito frio arrependido
É esse que me prende como um bandido
E me força a lamentar-me
Por algo que me julgo certo e convicto?

Minha insuportável alma gelada,
Longe da fogueira dos desejos,
Percebe que só não é nada,
A não ser um aglomerado de versejos mal feitos.

Mas são versejos
Que me farão voltar a mostrar os dentes
A olhar pra frente e seguir este caminho inconsequente,
Que tracei ao te cuspir de volta pro mundo.

Sim, voltarei a sorrir, como sempre o fiz,
E este fim infeliz, há de ser uma parte da raiz
Da nova vida que me espera, e boa será,
Como é, foi e já era.

Vou, sim, acatar a vingança que me impôs
Por saber-me digno do teu castigo,
Por saber-me ser eu a semente da tua fúria.
Mas ei de ainda ver doçura nos teus olhos em brasa,
Fingindo ser pura, enquanto arrasa esta cruel criatura
Que agora vos fala: Eu.

Entretanto, por enquanto, sigo assim:
Pagando a pena
Que é pequena,
Como a lembrança do nome
Que se perde na rima,
E que só não digo
Por no fim desses versos
Já tê-lo esquecido.

domingo, janeiro 09, 2005

RÉU CONFESSO OU DUVIDAS OU "?".

Vai me dizer o que é a vida?
Há de acabar com esta piada,
Com esse mistério sem graça,
Que pra fazer rir fundou mais de mil raças,
Milhões de tipos, bilhões de seres,
Que O são sem O ser?
-- --
Há de me explicar este breve eterno instante
Para que eu possa dizer aos próximos,
A resposta de mim tão distante, agora,
Passado os dias que eu tudo sabia,
Passado os tempos do sentir-se pra sempre,
Passado o passo desajeitado daquele que aprende andar,
Há de me dizer a explicação do fato que não pelo ato se,
Dentre os verbos, não sei o certo?
?
Não me responde
;
Então,
De que vale o peso nesse crânio oco,
Senão, pra me deixar mais louco?
/
?Percebes que deu a mim e aos meus a dádiva,
E mesmo assim te sentimos em dívida
Por não esclareceres a dúvida?
/
Até chegar a resposta ando pelo incerto,
Neste caminho deserto,
E acalmo a ignorância,
Com a certeza de tê-lo por perto.