terça-feira, agosto 31, 2004

CAFÉ DA MANHÃ


Toma-se o leite, a média, o pingado.
"Desce um café!"... Na grécia um azeite.
Amanteiga o pão quente.
O dia vai começar!

Cueca nova, meia de ontem,
Dinheiro pra hoje que pra amanhã não vai dar.
Em baixo do braço desodorante e os classificados.
Terno, gravata e camisa, é a busca do proletariado,
Personagem do desemprego massificado
Mendigando o salário que, como o crime,
Não compensa. Então,
Segue o pobre com sua sentença:
Buscar o que não há.

Ele vende, atende, limpa,
Fiscaliza, ensina,
Faz de tudo um pouco,
Trabalha feito um porco,
Mas com a força de um cavalo.
Na pata a ferradura,
E na cabeça a servidão.
Mau pago, paga com sangue.
Sangue de puro sangue
Transformado em pagaré,
Viciado em chicote.

E lá vai o baio seguindo a galope!

Puxa sua carroça pela estrada,
Seu capim é o pão e o café
Que alivia o ardor da chicotada.

CONTINUA NO ALMOÇO

quinta-feira, agosto 26, 2004

BÊBADO, FAZENDO RIMA


Há um líquido que me corre o fígado
Que me consome o sentido
Que me estraga os olhos e transfoma em belo
O feio homem em que me torno,
Quando entorno o perigo etéreo.

Há um líquido que me causa vício.
Que nas manhãs me traz suplício
E nas noites me abriga no alivio.

Há a causa do líquido em meu destino
Que me faz sair em desatino
Deixando os meus velhos passos como o de um menino
Que quer ir pra casa
Mas não sabe o caminho.

Há um líquido que me traz esperança
Que bebo por insegurança
E que se fosse sólido, alguém já dizia,
Eu comê-lo-ia.

Há um líquido que bebo na sexta
Ou em qualquer sobremesa
E só não bebo nas tetas porque nelas não o há.

Esse líquido não largo
E o copo em que habita eu hei de matar.
E é só na visse versa do final da conversa
Que eu sei: vou parar.

quarta-feira, agosto 18, 2004

SOBRE A FELICIDADE

Então,
Queres que eu te fale da felicidade?
Queres ouvir sobre o bom da vida?
Num vocabulário que te traga conforto,
Quer esquecer do mundo toda maldade?
Não lembrar que a carne se desfaz em feridas,
Enxergar um planeta redondo,
Sem ver que, de fato, é torto?

Pois bem:
A felicidade é o sol da vida, que
No horizonte, refletido no asfalto,
Se transforma no lago que você tanto busca.
Mira nele e vai!

- Me refiro ao sol, pois, quem mergulha no lago
Morde o asfalto -

Entendeu? Não? Te explico. Na prática.

Vê lá o homem que chora ao lado daquele que ri.
Vê que o que chora não chora por si.
Nem o que ri está rindo de si.
Já o que chora, chora pelo que ri,
O que ri, ri do que chora.
Porque o que chora, chora por outro,
Pelo que ri. Porque o que ri, ri de outro,
Quando deveria estar rindo de si.

Ainda não entende ou não quer entender?
Não percebe quem está aonde, mas procura.
A resposta é que o “aonde” é que está em “quem”.
Então, quem está em você?
Não entende? Procura.
Não quer? Chora.

Não quer.
Queres que eu te fale da felicidade.
Queres ouvir de mim sobre o bom da vida.
Num vocabulário que te traga conforto,
Prefere ser cego à enxergar que o planeta é torto.

segunda-feira, agosto 16, 2004

BIOGRAFIA DO COITADO

Nasce, come, cresce, bebe, fuma, cheira,
Enrola, manda, chora, suga, cheira, toma,
Pica, pega, fuma, chora, mama,
Deita, cola, cheira, chora, bebe,
Fuma, enrola, manda, cana, mama, cheira,
Passa, pipa, pega, passa, cheira, mata,
Cana, toma, senta, chora, deita, espera,
Cana, chora, reza, bebe, enrola, fuma, cava, chora,
Chama, pede, grita, reza, cava, deita, chora,
Fuma, cava, bebe, pipa, pica, toma,
Zica, coça, pega, chora, grita, reza, bebe, pica,
Passa, chora, fuma, cava, foge,
Cheira, coça, arde, grita
Chora, bebe, pede, mata, coça, arde, reza,
Chora, arde, chora, deita, reza, chora,
Coça, bebe, arde, deita, coça,
Morre.

segunda-feira, agosto 09, 2004

TENTATIVA DE VÔO

Na passarela do matrimônio
Fomos nós o casal vaiado.

Meu nome, que tu carregas,
Transformou-se no pseudônimo
Da infelicidade dos “desamados”,
Que na febre da cerimônia
Fizeram juras não pensadas,
Agora juras amaldiçoadas
E seladas com ouro.

O ouro que me aperta o dedo,
Onde guardo meu segredo,
O meu sonho fracassado de não ter feito
O que não foi: a alegria de nós dois.

Sonho e sumo. Sumo e vou.

Vou triste, sem caminho,
Sou pássaro que perdeu o ninho
E leva a vida a voar.

Com asa leve e bico duro,
Mas sem noção de norte,
Pois a ti amarei até morte,
E o que faz meu vôo forte
É o embalo dessa pena
- não a sina e sim a pena -

E até o ouro que me prende os pés,
Que me faz voar baixo, lento,
Não há de ser peso,
Pois nesse caminho sem vento,
O que me leva é teu soprar.

E se me sopras para longe de tuas asas, eu vôo.
Vôo reto, só, com cabeça de passarinho,
Voando sem destino até o dia começar,

E então acordo, no mesmo ninho, e me calo.
Não pio, me vaio.


domingo, agosto 08, 2004

A CARA DO VELHO


A cara do velho é infestada de rugas,
De linhas turvas sobre a pele espessa
Que esconde a clareza de um homem que nunca existiu.

Transpira tristeza, a cara do velho,
e envergonha o menino
Que herdou o destino
Que o velho estragou.

Vê a mãe com fome,
O irmão sem sobrenome
E olha pro velho que com um sorriso amarelo
O olha nos olhos com uma cara de pai.

A cara do velho que mora na foto
Que o menino carrega,
Repleta de fungos
O assusta pro mundo em que, sabe ele, será só...

A cara do velho é infestada de rugas,
De linhas turvas sobre a pele espessa
Que esconde a clareza do homem que um dia partiu.

quinta-feira, agosto 05, 2004

CÍCLICA ROTINA

Horas passam e transformam-se
Nas décadas que antecedem
A ausência do eu.

Passam-se vidas em devaneios tolos
E sob o Sol corpos carregam outros.
São o hoje de um novo,
Que sobrevivendo a Lua,
Virá depois.

Registros do tempo que se perderão
Entre os grãos de terra que um dia
Cegaram os olhos que se defenderam
Com lágrimas e agora, olhos vencidos,
São ilhas de ossos cercadas por nada.

Dentro, onde já latejaram as artérias das idéias,
A carne enrolada que desferiu amores e invejas,
Se tornou o alimento de parasitas microscópicos...
Não menos microscópicos que o parasita anterior.

E no silêncio abafado por terra
A vida, transformada em milênios,
Segue embalada pela mesma melodia:
A cíclica rotina.
Sol e Lua. Noite e Dia. Carne e Parasitas.

ÚLTIMAS PALAVRAS

Sussurro em seu ouvido palavras
Que nunca antes falei
Digo "te amo", "te adoro", "te quero bem".

Lamento minha faltas,
Minhas falas falsas,
Te perdôo e me desculpo
Por um erro de ninguém.

Minha recém sinceridade
Brota de minha boca, como brotam dos meus olhos
Gotas transparentes de um amor ausente.

Falo manso, ao pé do seu ouvido,
E você nem me vê,
Como até ontem eu
Nunca havia visto você.

E então te olho os olhos
Cerrados pelas pálpebras, e choro
Sobre o amor que eu não senti.

Mas é tarde pra te amar
É tarde pra falar.
Outros homens se aproximam, é tua hora de partir.
Nessa caixa escura e de madeira,
Que agora é teu lar.
...................................

quarta-feira, agosto 04, 2004

UM PONTO DA VIDA


Em algum ponto da vida uma vida te espera
Não, talvez, uma vida de sonhos,
Mas apenas uma vida.
Diferente da falta de vida que te preenche hoje.

Essa vida lhe trará sentimentos,
Não o amor, talvez sim, mas apenas talvez...
O ódio, a solidão, a paixão, a ternura,
Não todos, mas algum deles, ou um.
Talvez nenhum.

E então você vai se olhar e
Sentir que nada sentiu, nunca.
E vai sentir que viver sem sentir
Não é nada.

Você vai descobrir que é o que sente,
E se nada sente nada é.
E você nada sentiu.

Mas nesse ponto,
Se é espaço ou tempo não sei,
Você vai descobrir que tem uma vida.
Mas ela se foi e você não a viu.

A MÁSCARA


Por trás da máscara do medo
A boca fala
Abafada e sufocada
Pelo mármore da angustia
Que não te deixa respirar

O breu dos olhos aflitos
Cravejados na pedra fria
São como falsas safiras
Que se dizem raras
Mas existem em toda esquina

Esconde o frio na barriga,
O nó na garganta, a boca seca
É a máscara corroendo a carne
Se alimentando da alma.

A rua movimentada, o vizinho que espreita
A mulher que não chega, o olhar desconfiado do patrão
A solidão que não te abandona
A morte que há de te buscar
O que mais me dá medo?

Meus desejos. Meus anseios.

Longe um coração palpita.
É o medo visitando outro alguém.
Mais um que veste máscara
Cada vez mais comum.

DORME

Dentro de ti
Dorme um ente querido a mim.
Dentro de ti dorme outra parte de meu eu,
Que sei, não se tornará homem como eu.

Dorme no seu ventre,
Os restos de um amor partido,
Transformado na semente,
Do ser que não será vivido.

Então, no silêncio de suas entranhas,
Cala-se o pequeno inocente.
Ele não sabe do mundo,
Não sabe das dores, dos amores
Ele não sabe da gente

Absorto, distraído com a aorta que lhe nasce,
A aorta que há de ser-lhe arrancada
Não saberá ele o que é a vida, nunca.

Ingênuo, pensa: “Como será que serão meus pais?”.
“Não o seremos, nunca”, Respondemos.
E, absortos, nos arrependemos.

segunda-feira, agosto 02, 2004

RESTOS DE DOIS SONETOS


...cospe agora da tua boca
A gota da saliva minha
Que há de arder em tua língua.

Levanta tua trouxa de pertences, suma.
Na terra teu caminho é a rua.
Em mim o esquecimento.
--
Ah! Como é leve a liberdade!!
Livre, me entregarei em orgias,
Provarei o gosto das vinhas da maldade.
Serão as putas mais saborosas que as frias?

Saberei. Mas não provando com a língua,
Apesar das papilas pisadas por tantas salivas.
É que as feridas ardidas, fruto da tua gota exígua,
Não me deixam sentir o azedo-doce do sabor da vida...